quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Asas para os sonhos

Papai, quero voar.

Querida, crianças não voam.

– E pais, voam?

Não, filhinha, pais também não voam. Mas posso te levar num avião, que nos deixa viajar pelo ar. Nele, nós não voamos; ele apenas nos leva pro ar.

Não é isso, você não entendeu. Eu quero voar sozinha, com minhas próprias asas.

Filha, crianças não têm asas.

Essa era Dina, uma criança de cinco anos, amável e sonhadora como qualquer criança de cinco anos; porém, mais sonha do que vive, mais imagina do que toca, mais fecha os olhos do que os abre, diferente de muitas crianças de cinco anos. Olhos castanhos, boca miúda, bochechas visivelmente grandes, pele escura, combinando com seus cachos pretos reluzentes, fazem-na bela e, principalmente, angelical.

Papai, anjinhos voam, não voam?

– Se existissem, voariam.

– E se eu fosse uma anjinha, poderia voar?

Mas você não é anjo, querida.

Do peitoral da janela, abraçada a seu preferido urso de pelúcia, vislumbrava-se com os pousos e decolagens de diversos pássaros, apesar da feiúra urbana, para, assim, imaginar-se imitando-os, batendo asas, subindo, devagar, até alcançar pleno vôo, sentindo nuvens, pegando ora na lua, ora no sol. Ela quer voar, assim como voa o pombo, o passarinho amarelo de bico estranho, o balão que passa longe, o avião que faz barulho ou, ainda, como o anjinho que não existe. Mas, seria possível, em um dia qualquer desses, acordar com asas? Seria um fato insólito, absolutamente inimaginávelpara adultos, apenas. Para uma criança, seria imaginável. Para Dina, algo plenamente realizável e, inclusive, esperado. “Um dia acordarei com asas, pronta pra voar”, sempre dizia. Pensava em asas brancas, feitas de penas, assim como os pássaros, e bem maior que a deles, claro, calculando-se a proporcionalidade dos corpos em relação ao seu equipamento biológico de vôo. Estimava-se, portanto, um comprimento ideal para seu porte diminuto de criança, porém maior do que muitos seres da natureza que voam por . No entanto, acabava-se por não decidir se as asas surgiriam por cima dos braços, encobrindo-os, como uma fantasia para apresentação escolar, ou se eles seriam substituídos totalmente, evidenciando-se uma boa metamorfose infantil.

Mamãe, quando eu acordar com asas, quer voar comigo?

Mas, amorzinho, não seria muito perigoso sair por voando?

Não, não. Perigoso é ficar no chão.

Dina persistia. Todos os dias, dormia pensando em voar, em acordar capaz de ganhar os céus, fugir do quarto apertado e ser livre para bater suas asas. Para ela, bastava acreditar. E, por isso, conseguiu. Um dia desses qualquerafinal, para crianças o tempo não é austero, portanto, o dia da semana não tem importância –, ao despertar, com o sol recente brilhando na janela, Dina acordou mais pesada do que o costume. Carregava, como parte inseparável do corpo, um belo conjunto de asas; brancas, feitas de penas e do tamanho exato para sua estatura, do jeito que imaginara. Ainda deitada, admirava, olhando para os lados, seus braços que foram transformados em graciosas ferramentas de vôo, baseadas na melhor tecnologia possível: a natureza. Mas, apesar da empolgação, teve um pouco de trabalho para se levantar, que não tinha mais a facilidade das mãos e dedos. Portanto, foi, aos poucos, movimentando as pernas, até alcançar o fim da pequena cama e, assim, colocar-se de . Depois, correu para o espelho mais próximo, vendo o que sua imaginação havia, de verdade, criado. Foi impossível não abrir um grande sorriso ao ver-se igual a um pássaro, dono do céu, da lua, do sol e das estrelas. Suas bochechas coraram, os olhos mostravam-se mais brilhantes do que qualquer luz de luar, traduzindo a felicidade em apenas um rosto infantil.

Porém, surgia um problema. A janela de seu quarto era muito pequena para uma menina-pássaro e, além disso, era toda gradeada. Dali, portanto, era impossível levantar vôo. Por isso, teve a idéia de caminhar até a varanda da sala, grande o suficiente para batida de asas. Como papai disse que crianças não voam e mamãe acha perigoso, Dina não quis convidá-los nem para assistir à decolagem, tendo cuidado de não fazer muito barulho ao caminhar pela casa. Séria fácil para crianças normais, mas não para as que têm asas. Estas, ousavam esbarrar-se nos móveis, quadros, peças decorativas, livros, tudo o que poderia chamar atenção ao cair no chão. O carpete, no entanto, colocado em todo corredor, auxiliou no amortecimento das quedas, evitando aparições adultas a estragar a bela cena com seus olhares incrédulos. Assim, foi possível chegar à varanda.

Neste dia, o vento estava ameno, como que dando boas vindas à nova aventureira dos ares, a qual posicionava-se animadamente para a decolagem. Bastaria bater asas para ver seu sonho realizado. Respirou fundo e começou. Na primeira tentativa, saiu apenas um palmo do chão. Precisava bater mais forte, continuamente, imaginou. Foi assim que fez, e foi assim que conseguiu voar pela primeira vez. Subiu muito rápido, deixando para trás os edifícios da cidade, até conseguir estabilizar o vôo, mantendo uma boa altura. Conseguia, dessa forma, chegar bem perto de grupos de pássaros, provavelmente migratórios, os quais assustaram-se de início com a presença da menina, para, em seguida, praticamente aceitá-la no grupo. Nem os animais resistem a um afeto infantil.

Depois, pensou se seria possível, assim como nos sonhos, alcançar o sol, a lua ou as estrelas. Reparou que, mesmo no céu, era difícil pegar qualquer estrelinha que fosse, grande ou pequena, brilhante ou não. Talvez, conhecendo melhor o mundo aéreo, possa encontrar um dia o caminho para os imponentes astros.

Dessa forma, portanto, Dina passou toda a manhã, alcançando lugares distantes, todos vistos por cima, num ar de superioridade; até aparecer o inesperado. Havia alguém, além dela, a voar por . E não eram animais como as gaivotas ou os pombos, ou, muito menos, aviões inesperados. Era, aparentemente, um menino de asas, assim como ela, buscando os céus. Quem seria? Ele era muito branquinho, olhos azuis, cabelos loiros e encaracolados, tão pequeno e baixinho como Dina. Um anjinho desgarrado, fugitivo? Falaria a mesma língua?

Você é um anjinho?

Não. Sou criança, assim como você. Sonhava em ter, um dia, asas para voar e ser feliz descobrindo os céus.

Eu também! Todo dia, ao dormir, pensava em acordar transformada em um passarinho, pronto pra decolar.

Você tem cinco anos, igual a mim?

Isso, uma mão inteirinha de dedos.

– E, além de nós, quantas pessoas mais podem voar?

Até agora, vi apenas alguns poucos, sempre meninos ou meninas.

Então, apenas crianças podem ter asas para voar?

– Acho que sim.

– E por qual motivo os adultos não conseguem asas?

Eles são presos ao chão, não conseguem sonhar de verdade; acham que tudo o que vêem é real, que esse mundo existe de verdade.

Coitados.

Os dois, juntos, bateram asas e voaram para o sol.

3 comentários:

Anônimo disse...

OOOh Leooo!! Que lindooo =~~
Valeu a pena esperar! Li no momento mais quieto! sem interrupçoes! ameeei =~~

=*

Clarice. disse...

também valeu a pena ler bem devagarinho. fiquei procurando minha asas por aqui.

muito bom.

Marcelo Oliveira disse...

Leonardo,

aqui é Marcelo do QG. eu gostei muito do conto, o sonho e a imaginação o impregnam de uma forma bastante natural, como visto nas histórias do Pequeno Nemo ou no capítulo em que Baleia morre em Vidas Secas.

Agora, a conversa entre os garotos de cinco anos me soou pouco natural. As crianças de cinco anos costumam falar muito errado e falar coisas sem muito nexo ou sabedoria.

Achei que a conversa no final meio que tornou a história meio clichê.

Mas, está muito bem escrito e envolvente, além de super poético. Parabéns.